A síndrome de Camboriú pode ser definida como um sequestro da pregação
pentecostal que se caracteriza por alegorismo na
interpretação, triunfalismo no
conteúdo, misticismo na concepção de
espiritualidade, precarismo no conhecimento
bíblico, espetacularização na performance e “breganização” das vestes. Reunidos esses
sintomas, tem-se um verdadeiro paciente, embora eu creia que pacientes mesmo
sejam os irmãos conservadores da doutrina que têm de conviver com os portadores
de tal enfermidade, haja vista a glamourização da doença, incentivada por
líderes que veem nisso alguma virtude ou algum benefício.
Assim como em outras síndromes,
adota-se aqui uma qualificação relativa à cidade em que foi descoberta ou em
que se evidenciou a doença – um exemplo famoso é o da síndrome de Estocolmo.
Não fiquem, portanto, chateados os moradores de Camboriú-SC – se ficarem,
utilizem a expressão equivalente “síndrome da última hora”.
Trata-se de fenômeno
importante, que de modo nenhum pode ser desprezado, pois há anos vem formatando
o modelo doutrinário-teológico, hermenêutico, homilético e idiossincrático de
tantos jovens que se entendem por pregadores pentecostais. A tal ponto chegou a
síndrome de Camboriú que o próprio pentecostalismo passou a ser visto por
muitos como identificado com os sintomas da tal enfermidade, o que os
pentecostais históricos não deveriam aceitar em nenhuma hipótese. Bem por isso,
é necessário diagnosticar, reconhecer que existe, avaliar e interpretar o
fenômeno, a fim de que ele possa ser enfrentado e combatido.
Passemos, pois, a uma
descrição de cada um dos sinais dessa patologia:
Quanto ao alegorismo na interpretação, o
que se tem na síndrome de Camboriú chega a ser pior que o método alegórico,
pois este pelo menos obedece a uma lógica própria, qual seja, o entendimento de
que as Escrituras possuem um sentido oculto, “espiritual”, subjacente às
palavras. A seu turno, o alegorismo da última hora é como um arremedo do método
alegórico, uma farsa que sucede à tragédia, uma simples manipulação das
palavras ao bel-prazer de quem fala, sem compromisso com a verdade. Para um
adoecido pela síndrome de Camboriú, as passagens bíblicas são ferramentas que
se podem utilizar de qualquer maneira, disponíveis à retórica mais abusada,
ordinariamente com o fito de emocionar a plateia.
O triunfalismo do conteúdo abebera-se de uma
hinologia de “Só vitória!” e de resquícios da Teologia da Prosperidade, uma
praga que já nos deu mais trabalho em tempos pretéritos, mas que ainda produz
seus efeitos. Assim como no caso do alegorismo interpretativo, o triunfalismo
característico da síndrome de Camboriú não é sistemático, não observa cânones
conceituais, planando livremente por sobre a cabeça inventiva do pregador, cuja
imaginação costuma ser muito criativa. Eles prometem coisas que Deus não
prometeu; gostam de falar nos “sonhos de Deus”; confundem o dom de profecia com
a repetição de declarações baseadas no desejo; enfim, substituem o culto a Deus
pelo culto a cada homem – por isso é
subjetivismo; se fosse culto à humanidade, à natureza humana, seria
antropocentrismo, outro tipo de idolatria.
O misticismo na concepção de espiritualidade, outro
sintoma da síndrome de Camboriú, advém de um pseudopentecostalismo que atende
pelos nomes de “reteté de Jeová”, “meninice”, “fogo estranho” e “carismania”, e
que também podemos classificar como “teologia do manto”. Essa deturpação do
exercício dos dons espirituais veio ao Brasil, de forma acentuada, por volta da
década de 90, e tem inspiração, por exemplo, na “Bênção de Toronto”. O
misticismo pseudopentecostal inclui “cair no poder”, dançar, gritar, urrar, rir
descontroladamente, saltar, abrir os braços e sacudi-los, marchar, rodar,
imitar animais, fazer caras e bocas afetando êxtase. Com a síndrome de
Camboriú, o problema, que já era bizarro, mas se mantinha em setores
periféricos, ganhou a ribalta.
O precarismo do conhecimento bíblico consiste num
sintoma bem curioso da síndrome de Camboriú: se antes os pregadores
pentecostais, em sua média, eram conhecidos pelo anti-intelectualismo, também é
verdade que havia muito mais conhecimento da Bíblia, muito mais conhecimento da
história da salvação e das principais doutrinas cristãs. Agora, o que acontece
é que pregadores da última hora sacam de livros e da internet alguns conceitos
e recursos técnicos, às vezes de grego e hebraico, para sedução do público, ao
mesmo tempo em que demonstram, aos olhos de um entendedor mínimo,
desconhecimento teológico, falta de identidade doutrinária, descompromisso com
a história da salvação e uma cultura geral deficiente. Assim, substituem o
simples desapreço pelo estudo por uma aparência de intelectualidade, o que é
igualmente… desapreço pelo estudo, mas consegue ser muito pior do que aquilo
que veio substituir.
A espetacularização na performance está
associada, claro, ao misticismo na concepção de espiritualidade, mas há aqui um
elemento singular, relacionado ao personalismo do pregador, à sua vaidade, ao
marketing pessoal, ao emocionalismo, à lavagem cerebral, à psicologia das
massas, à sugestão, ao business, a
todo o encanto forjado para assaltar os corações dos incautos, dos que não vão
renunciar à “bênção”.
A “breganização” das vestes (perdoem-me o
neologismo), derradeiro sintoma da síndrome de Camboriú, é um capítulo à parte:
ternos de cor chamativa e diferenciada, sapatos multicoloridos de bico
finíssimo, coletes à prova de bom gosto, anéis de saturno, calças “embaladas a
vácuo”, cabelos próprios de metrossexuais – tudo isso contribui para que o
pregador apareça, ainda que ele diga o contrário. Vestir-se como um homem
comum, de terno e gravata, seria atestado de pouca unção?
Diferentemente do que alguns pensam, a síndrome de Camboriú (ainda) não
caracteriza a essência do Movimento Pentecostal brasileiro, pois (a) documentos
oficiais (como declarações de fé, decisões convencionais, literatura
denominacional) condenam práticas que ora caracterizamos como sintomas da
síndrome; (b) a massa evangélica pentecostal é heterogênea, e dentro dela
existe um grande contingente de irmãos que insistem em manter a fé pentecostal
ortodoxa, especialmente os irmãos que conhecem a doutrina e frequentam a escola
bíblica dominical; (c) o movimento da última hora é historicamente recente,
havendo tempo, portanto, para analisá-lo e confrontá-lo de forma eficaz; (d) em
termos teológicos, doutrinários, históricos, litúrgicos, hermenêuticos e
homiléticos, o pentecostalismo, como um todo, não pode ser definido pelos
moldes de Camboriú; (e) eventuais interesses outros precisam ser identificados
e denunciados, pois a fé pentecostal não pode ser sequestrada por um espetáculo
histriônico e superficial como esse.
Portanto, sinto-me autorizado a afirmar que um dos maiores desafios da
Igreja brasileira – não só pentecostal, mas da igreja brasileira em seu
conjunto – será imposto pela perspectiva advinda de Camboriú, porque não se
podem desconsiderar os males provenientes de um fenômeno que avança sobre o
maior movimento eclesiástico do país (pentecostal e “neopentecostal”),
potencializando-se pelas redes sociais, congressos, festas e atividades
variadas.
Recuso-me a cruzar os braços. Mas precisamos de muitos soldados, de um
numeroso exército de irmãos conscientes da necessidade de enfrentarmos essa
doença. Hoje os acometidos pela síndrome de Camboriú são pregadores convidados.
Daqui a pouco eles poderão ser nossos pastores. E então? O que será de nós?